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Brasil registrou recorde de casos de estupro em 2018, segundo estudo

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Ana* tinha só quatro anos quando um tio paterno, numa temporada morando em sua casa, passou a estuprá-la. Aproveitava a distração dos pais dela, que viam televisão na sala, para abusar da sobrinha na cozinha. Anos mais tarde, aos dez, Ana foi violentada de novo, dessa vez por um vizinho.

No último ano, 63,8% dos estupros reportados à polícia no Brasil foram cometidos contra vulneráveis — casos em que, como Ana, a vítima tem menos de 14 anos e é considerada juridicamente incapaz de consentir uma relação sexual; ou ainda em que o abusado não consegue oferecer resistência, seja por deficiência, enfermidade ou por estar sob o efeito de drogas. Os dados estão do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado na manhã desta terça-feira pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Na época do estupro cometido pelo vizinho, a mulher do abusador havia acabado de ter um bebê e chamou a menina para ajudá-la com os cuidados da casa. O homem de cerca de 50 anos começou “esbarrando” nos seios de Ana. Depois deu início às chantagens — oferecia algo em troca de poder tocá-los. Como se sentia culpada por não reagir, Ana se fechou. Já tinha 26 anos quando contou para a mãe do abuso do tio. Decidiu poupar o pai, que poderia ficar magoado com o irmão. A agressão do vizinho é a primeira vez que relata publicamente.

— Inconscientemente, sabia que não podia. Mas não conseguia falar nem gritar. Dia desses, vi uma foto antiga e meu tio estava do meu lado. É nítido que eu estava retraída, meu rosto estava diferente. Mas ninguém via, ninguém notava — diz Ana.

Para a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o assunto representa grande sensibilidade e alerta para a subnotificação dos casos.

— Esse é um tema sobre o qual falamos muito pouco, apesar de ser um dos grandes desafios não só da área da segurança, mas também da saúde. Como ainda temos muita subnotificação dos casos de estupros, o problema é bem maior do que conseguimos medir — afirma Samira.

Perfil das vítimas

O Anuário revela que o Brasil nunca teve tantos casos de estupro quanto em 2018, com recorde de 66.041 registros — um aumento de 5% em relação ao ano anterior. Por dia, 180 pessoas foram violentadas no país. A publicação traz, pela primeira vez, um compilado de microdados que permite traçar o perfil das vítimas e dos autores dos abusos sexuais, com base em Boletins de Ocorrência da polícia.

Segundo o Anuário, 81,8% das vítimas são do sexo feminino, e 18,2%, masculino. Em relação à raça, 50,9% são negras, 48,5% brancas e 0,6% amarelas. No caso do estupro de vulneráveis, o ápice da violência sexual ocorre aos 13 anos entre meninas. Para os meninos, a maior concentração de registros é por volta dos sete anos. O levantamento mostra ainda que 75,9% dos agressores são conhecidos das vítimas. Do total de estupros reportados, 93,2% tiveram autoria única e 6,8% foram cometidos por mais de um abusador. Os homens são maioria (96,3%) entre os autores.

Crimes sexuais estão entre os menos reportados à polícia — seja por medo de retaliação e do julgamento, seja pelo descrédito nas instituições de justiça e pela dificuldade de comprovação do crime. A última pesquisa nacional de vitimização estimou que só 7,5% das vítimas notificam a violência sexual à polícia.

Nos Estados Unidos, a taxa varia entre 16% e 32%, a depender do estudo. O mais recente, publicado em dezembro passado pelo Departamento de Justiça Americano, mostrou que 23% dos abusados levou o crime à polícia.

Abuso recorde
O Brasil registrou 180 casos de estupro por dia em 2018, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
 
Ocorrências no Brasil desde 2011
EM MILHARES
66
63,1
50,2
47,6
43,8
Perfil das vítimas
A maioria tem até 14 anos, é negra e do sexo feminino
 
POR IDADE
POR SEXO
POR RAÇA
63,8%
26,2%
81,8%
18,2%
50,9%
48,5
têm até
14 anos
mais de
14 anos
Feminino
Masculino
Negra
Branca
0,6%
Amarela
Perfil do agressor
Boa parte é do sexo masculino e conhece a vítima
 
75,9%
93,2%
96,3%
é conhecido da vítima
dos estupros é cometido
por um único autor
dos autores são
do sexo masculino
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

Sinais

A psicóloga Daniela Pedroso, do Hospital Pérola Byington, referência no atendimento de vítimas de violência sexual, diz que as crianças abusadas costumam dar pistas. É preciso que os responsáveis fiquem atentos a qualquer mudança brusca de comportamento, como machucar animais, ter pesadelos, postura sexualizada e brincadeiras violentas com bonecas. Ou, ainda, a possíveis regressões, como voltar a fazer xixi na cama, a usar chupeta e mamadeira e a ter medo de dormir sozinho. Se a criança passa a ter receio de algum conhecido em específico, pode ser um alerta. Para os pré-adolescentes, os sinais são isolamento social, queda do rendimento escolar e dificuldade de socialização.

— Esses comportamentos podem ser sinal de que algo está fora da normalidade, mas não é sinônimo de violência necessariamente — afirma Pedroso.

A psicóloga enfatiza a importância de conversar com os filhos a respeito dos limites do toque. Já na idade pré-escolar, por volta dos cinco anos, é recomendado explicar para a criança que o corpo é só dela, que ninguém tem direito de tocá-lo e que qualquer comportamento anormal deve ser comunicado.

— É preciso passar a informação de acordo com cada faixa etária, de maneira mais delicada, mais polida. Você não vai falar que as pessoas estupram. Você vai falar que ninguém tem direito de tocar no corpo dela. Se tem diálogo franco, aumenta a possibilidade de a criança contar algo estranho — diz Pedroso.

Nos casos atendidos no Hospital Pérola Byington, o principal abusador é o pai biológico, seguido do padrasto, avô e tio. Como a violência ocorre, em geral, dentro de casa, Pedroso reforça que a escola acaba sendo um importante canal de diálogo para a vítima de abuso. É um espaço de acolhimento, onde a vítima muitas vezes se sente mais à vontade para falar sobre a violência sexual.

Na última semana, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou o recolhimento de material didático que considerava fazer “apologia à ideologia de gênero”. Tratava-se de um livro de Ciências, elaborado pelo próprio Estado, com um texto chamado “Sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual”.

Minutos depois, o presidente Jair Bolsonaro declarou ter determinado ao Ministério da Educação que elabore um projeto de lei contra a “ideologia de gênero” no ensino fundamental. Anunciado pelo Twitter, não especifica o que seria considerado um conteúdo inadequado.

— Nesse momento de cruzada moral do presidente e apoiadores em torno de ideologia de gênero, é importante ter acesso aos dados. Se não discutirmos educação sexual e gênero dentro das escolas, vamos em breve multiplicar esses números — diz Samira Bueno.

Agora com 32 anos, Ana é casada e tem dois filhos — uma menina de cinco anos e um menino de um. Diz que nunca teve coragem de fazer terapia para falar sobre os abusos, e atribuiu às violências o fato de ser “travada” e não ter conseguido, muitas vezes, falar “não” para parceiros. Por temer que o crime se repita com seus filhos, já alertou a mais velha sobre os riscos. E criou um grupo no Facebook para acolher outras vítimas de estupro. Vez ou outra, precisa dar um tempo das redes. O relato de outras mulheres acaba fazendo com que reviva sua dor.

*Ana é um nome fictício

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