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O brasileiro com problemas cardíacos que desenvolveu um gel para imprimir corações artificiais

Não seria exagero dizer que o destino profissional do médico Gabriel Liguori foi traçado no seu nascimento. Ele veio ao mundo com uma cardiopatia congênita chamada atresia pulmonar, o que significa que uma das principais artérias do seu coração nunca foi formada.

Aos sete dias de vida, entrou pela primeira vez no Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), onde, aos 2 anos, foi operado. Hoje, é médico especializado no atendimento de crianças. Como pesquisador, desenvolveu um gel, feito com as próprias células do paciente, que poderá levar à criação de um coração artificial para transplantes.

As passagens constantes pelo Incor desde os primeiros dias de vida criaram nele o interesse pela Medicina, mais precisamente pela cirurgia cardíaca pediátrica. “O que poderia ter sido um trauma acabou virando uma paixão”, diz o médico, hoje com 29 anos.

Além disso, suas limitações de saúde, que o impediam de praticar esportes ou de participar de brincadeiras que exigiam esforço físico, o levaram cedo para um caminho mais intelectual, que o aproximou da leitura e das ciências. Lia de tudo nessa área, de Charles Darwin à mecânica quântica, além de fazer seus próprios experimentos em casa.

Como isso o trouxe até o desenvolvimento do gel é uma longa história.

“Tentando resumir um pouco, o fato de eu estar constantemente no hospital me despertou o interesse pela Medicina”, conta. “Desde criança, eu sempre quis ser médico e trabalhar no Incor, tratando crianças que apresentassem essas mesmas malformações congênitas que eu tive. Com sucesso, passei no vestibular e entrei na Faculdade de Medicina da USP em 2009.”

Desde o início da graduação – e por toda ela -, Gabriel se envolveu com diversos projetos na área de cirurgia cardíaca, principalmente a pediátrica.

“Na época em que eu estava terminando a faculdade, comecei a entrar em contato com a engenharia de tecidos, inicialmente à distância”, conta. “Quanto mais eu lia sobre ela, mais encantado eu ficava e mais eu acreditava que aquele era o futuro da cirurgia cardíaca. Basicamente, essa área procura organizar polímeros, células e biomoléculas de maneira a construir tecidos vivos, para a reposição e regeneração de órgãos ou parte deles”, explica.

De acordo com ele, hoje há milhares de pessoas na fila de transplante cardíaco, e a maioria delas nunca conseguirá receber um coração.

“Por isso, acreditando que seria possível criar órgãos em laboratório nos próximos anos e, assim, resolver o problema da escassez – e também da rejeição – para transplante, decidi que faria meu doutorado nessa área”, diz. “Assim, em 2015, ingressei direto nele, sem fazer mestrado, na Universidade de Groningen, na Holanda, e desenvolvi uma série de projetos, sendo que um deles deu origem a esse gel.”

Impressão em 3D

Liguori explica que seu plano é construir um coração utilizando uma técnica de engenharia de tecidos conhecida como bioimpressão, que nada mais é do que a impressão 3D de tecidos humanos.

“Diferentemente da impressão 3D tradicional, entretanto, em vez de utilizar materiais plásticos como matéria-prima, a bioimpressão utiliza algo chamado de biotinta, que se constitui justamente do gel que desenvolvemos, combinado com células-tronco, que, em conjunto, vão originar os tecidos de interesse.”

O pesquisador não dá detalhes do processo de fabricação do gel, porque ele está em fase de análise para patente. O que pode dizer é que é um produto fabricado a partir de tecidos animais análogos aos dos humanos.

“Para fazê-lo, utilizamos um coração suíno”, revela. “A partir desses tecidos animais, retiramos as células, para não causar rejeição no receptor, e utilizamos apenas o conteúdo extracelular. Com isso, vamos imprimir um órgão artificial.”

De acordo com ele, os resultados até agora têm sido promissores. O gel se mostrou, nos estudos, como um grande aliado na cultura tridimensional – e consequente bioimpressão – de células, em particular células-tronco. “Elas entendem o nosso gel como se ele fosse o tecido nativo, onde deveriam estar e, dessa forma, respondem exatamente como as encontradas nele”, explica.

Liguori diz ter demonstrado que o gel, além de influenciar a proliferação e diferenciação de células-tronco, também possibilita a formação de redes microvasculares, que são os pequenos vasos que existem em todos os órgãos e pelos quais o sangue passa para chegar aos tecidos.

Isso é muito importante pois, para qualquer órgão que se queira fabricar em laboratório, será necessário que eles apresentem uma extensa rede microvascular para não morrer.

Formação

Durante sua graduação na USP, Liguori passou um período em Harvard, fazendo o curso “Principles and Practice of Clinical Research” e estagiando no Children’s Hospital Boston, considerado um dos melhores dos Estados Unidos na área pediátrica.

O jovem pesquisador também fez um estágio em Londres, onde, durante um mês, pôde analisar a coleção de corações com cardiopatias congênitas do Royal Bromptom Hospital. Depois, também por um mês, esteve na cidade holandesa de Maastrich, pelo Programa de intercâmbio da International Federation of Medical Students Associations.

No final de 2014, ele se formou com destaque na FMUSP, recebendo o Prêmio Prof. Dr. Edmundo Vasconcelos de distinção em Cirurgia.

No ano seguinte, Liguori foi selecionado como um dos 24 bolsistas – entre 80 mil candidatos – da Fundação Estudar, que dá apoio financeiro e de orientação acadêmica para jovens com potencial de liderança.

Em 2017, voltou ao Incor, agora como médico e pesquisador. Atualmente, ele continua trabalhando no desenvolvimento do gel, que está em fase de estudos pré-clínicos. “Ou seja, estamos estudando seu funcionamento em animais para compreender melhor como o organismo reage a ele quando é implantado em diferentes regiões do corpo”, explica.

Ele ressalva, no entanto, que o uso do produto em pacientes ainda deverá levar algum tempo, não por causa do gel em si, mas pelos diversos outros processos que são necessários otimizar para que se consiga fabricar órgãos e tecidos em laboratório. “Mesmo assim, acredito que conseguiremos iniciar testes clínicos com tecidos mais simples, fabricados a partir desse dele, nos próximos cinco anos”, prevê.

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